
O advogado é Professor de Direito da
UFPB, assessor jurídico popular na Dignitatis, integrante da RENAP-PB,
Coordenador do GT Povos e Comunidades Tradicionais, Questão Agrária e Conflitos
Socioambientais do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais
(IPDMS), e doutorando no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.
Segue entrevista na íntegra:
1) O advogado Manoel Mattos integrava
a Comissão de Direitos Humanos da OAB-PE e atuava, principalmente, contra
grupos de extermínio, quando foi assassinado na Paraíba, em 2009. Recentemente,
nesse ano de 2015, dois dos cinco acusados foram condenados pelo crime em júri
popular (Recife-Pernambuco). Você poderia nos falar sobre os momentos mais
importantes que transcorreram, entre 2009 e 2015, para a responsabilização dos
acusados e para visibilização do caso?
EDUARDO - A execução de Manoel Mattos, no dia 24
de janeiro de 2009, ficará marcada para sempre na memória dos familiares,
amigas(os) e companheiras(os) de luta pelos direitos humanos, mas também junto
a população mais vulnerável da região de Itambé (PE) e Pedra de Fogos (PB) que
tinha em Manoel Mattos uma figura que simbolizava não apenas a advocacia
tradicional, mas também o gosto pela política, militância social e participação
partidária em várias instâncias, era uma pessoa que gostava de gente, reuniões
e principalmente de denunciar os desmandos na administração pública , no
sistema de justiça e nas opressões do dia-dia a partir da sua realidade.
Essa data é importante para entender a
parte e o todo da questão Manoel Mattos, pois foi a partir dessa execução que
encontramos uma síntese da fragilidade do programa de proteção aos (as)
defensores (as) de direitos humanos. É importante lembrar que entre os anos de
2002 – 2003 a advogada Valdênia Paulino em São Paulo e o advogado Manoel Mattos
em Pernambuco foram os primeiros defensores de direitos humanos com escolta da
polícia federal e uma discussão mais densa sobre a criação, instalação e
funcionamento deste programa se instaurou definitivamente na agenda dos
direitos humanos.
A proteção no caso de Manoel Mattos se
dava em face de uma cautelar na Organização dos Estados Americanos conseguida
pela Justiça Global, Dignitatis e demais parceiros no final de 2002, que
abarcava a Promotora Dra. Rosemary Souto Maior e um ex-pistoleiro (com seus
familiares). Este ultimo se tornou um colaborador nas investigações após uma
tentativa de queima de arquivo e foi incluído nas cautelares junto com a
promotora responsável pelo caso. Nesse momento, a discussão sobre o programa
proteção de defensores de direitos humanos mobilizou a sociedade civil,
movimentos sociais e as realidades de vários Estados da federação,
principalmente a Paraíba, Pernambuco, São Paulo, Pará, Bahia e Paraná. Para que
se tenha uma ideia, 300 execuções entre os Estados da Paraíba e Pernambuco
identificadas entre 1994 – 2002 tinha sido registradas, denunciadas e/ou
tabuladas por CPIs (04 grandes CPIs nos Estados de Pernambuco e Paraíba –
Região Nordeste entre 1999 – 2002), segundo dados consolidados em Relatórios na
OEA, ONU e CDDPH. Havia também inquéritos policiais parados, e a população de
Pedras de Fogo chegou a destruir a delegacia da cidade em 2006 após a execução
de uma criança por um membro de grupo de extermínio. Sendo que em 90% dos casos
a autoria era desconhecida, não havendo
dados estatísticos confiáveis , principalmente do lado do Estado da Paraíba.
Enfim, o breve contexto aqui relatado é para que se tenha uma dimensão final do
problema. Apenas em 2002, foi realizado o primeiro concurso público após a
Constituição de 1988 para polícia civil no Estado da Paraíba.
De toda forma, a partir dessa execução
em 2009 e de circunstâncias, contextos e lutas similares em todo o Brasil, sob
o prisma das criminalizações, perseguições, ameaças e assassinatos de
defensores de direitos humanos (Irmã
Dorothy em 2005), a Justiça Global e a Dignitatis resolveram em acordo com Dona
Nair (mãe de Manoel Mattos) e demais contatos abrir três frentes de atuação : 1
) O monitoramento do caso na Justiça Estadual da Paraíba ; 2) Pedido de
investigação pela Polícia Federal em face de crime cometido em fronteira e 3)
Acionar a Procuradoria Geral da República para que o IDC fosse levado ao STJ,
e, por fim, aplicado pela primeira vez na prática após a Emenda 45/04 (Reforma
do Judiciário).
Em relação ao 3º ponto, creio que o
papel da Articulação Justiça e Direitos Humanos (JUSDH), Movimento Nacional de
Direitos Humanos (MNDH), Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares
(RENAP), Ordem dos Advogados do Brasil (Conselho Federal e Seccional
Pernambuco), Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (atual Conselho
Nacional de Direitos Humanos) e dos familiares de Manoel Mattos (Dona Nair
principalmente) foram fundamentais, pois a cada dois meses um novo pedido para
a PGR para federalização do caso era realizado, também ganhou corpo o interesse
pelo tema nas Universidade, principalmente na UFPB e UnB – havendo realização
de seminários – e também por outros apoios que se juntaram a questão da
federalização, como os apoios de juristas, organizações de direitos humanos do
Brasil e de fora do Brasil, toda essa movimentação em janeiro e julho de 2009,
que levou, por fim, a PGR a ingressar com o pedido junto ao STJ, bem
consistente do ponto de vista jurídico e também cercado de uma articulação
política muito importante.
Cronologicamente destacaria:
- 24 de janeiro de 2009: execução de Manoel Mattos e horas antes de um assistido de Manoel Mattos.
- 28 de janeiro de 2009: Justiça Global e a Dignitatis solicitaram ao Ministro da Justiça a aplicação da Lei 10.446/2002
- 10 de fevereiro de 2009: Justiça Global e Dignitatis protocolam requerimento junto a PRG para que seja requerida junto ao STJ a federalização do caso.
- Abril 2009: Criada a Comissão Especial Manoel Mattos (Conselho de Defesa de Direitos da Pessoa Humana – Secretária de Direitos Humanos da Presidência da República)
- 23 de junho de 2009: PGR protocola o IDC n. 02 junto ao STJ
- 09 de julho de 2009: OEA amplia cautelares para familiares de Manoel Mattos e Deputados Federais Luiz Couto e Fernando
2) Quais são os próximos passos após o
julgamento?
EDUARDO - Aguardar a apelação por parte das
defesas daqueles que foram condenados, por certo também iremos apelar em face
da absolvição de outros dois, aguardaremos a posição do Tribunal Regional
Federal da 5 Região para que esse capítulo seja encerrado. De toda forma temos
desafios pela frente, existem outros casos conexos que estão em trâmite nas
instâncias e instituições competentes que devem seguir a decisão do STJ e as
orientações do Conselho Nacional de Justiça, visto que o processo encontra-se
abarcado pelo Programa Justiça Plena. Do ponto de vista dos familiares,
amigas(os) e companheiros (as) de luta sabemos que a materialização do processo
através do júri é um momento de emoções à flor da pele, mas que seja também um
tempo de reflexão e compreensão de toda a luta que Manoel Mattos se envolveu e
hoje empresta o seu nome para a história dos direitos humanos no Brasil.
3) De acordo com pesquisa realizada
pela ONG internacional Global Witness, o Brasil lidera ranking de violência no
campo pelo 4º ano consecutivo, e as maiores vítimas são ativistas ambientais e
agrários. Por sua vez, a campanha "Linha de Frente: Defensores de Direitos
Humanos" busca visibilizar defensores de DHs no Brasil que vem sofrendo ou
sofreram criminalização, ameaças e atentados, dentre estes, Manoel Mattos. Em
que medida você percebe que o resultado do julgamento pode servir ao processo
de busca pelo fim dessa violência contra defensores de direitos humanos,
agrários e ambientais no Brasil?
EDUARDO - Não haverá fim da violência contra
defensores(as) de direitos humanos, agrários e ambientais, pelo simples fato de
que, ao se colocarem em defesa desses direitos, povos, grupos, temas e/ou
perspectivas de uma outra sociedade, de um outro modelo econômico, de uma outra
perspectiva cultural, de novas/velhas narrativas dos direitos humanos, irão
encontrar mais violências, sejam elas físicas, psicológicas, simbólicas e ou de
natureza difusa complementar. O recado que o resultado do julgamento aponta na
realidade são vários: 1) Que a vida de
Manoel Mattos, a dedicação dos familiares e a articulação da sociedade civil
entre si pelo elo de solidariedade não foram e não serão em vão, nem nunca
foram na história da humanidade quando se quer mudar algo; 2) Que o
funcionamento das instituições do sistema de justiça e do sistema de segurança
pública devam ser mais sincronizados com as questões postas pela sociedade
civil, movimentos sociais, pesquisadores e institutos, são tantas conferências,
seminários, congressos, livros, documentos, cartas e afins, está tudo lá faz
tempo; 3 ) Que a sociedade como um todo, ali representada pelos jurados, não
aceita mais conviver com a naturalização da violência e impunidade, precisamos
de respostas mais práticas para questões relacionadas a federalização, sem
dúvida, mas a questão central é que a mensagem sobre o papel de Manoel Mattos
enquanto defensor de direitos humanos, ficou perceptível; 4) Que não é
suportável mais que as autoridades públicas sejam omissas diante de tantos
contextos e relatos de ameaças, abuso de poder, torturas e outros crimes que
acontecem todos os dias contra vários “Manoeis” e “Manuelas”, “Marias”,
“Carlos” e tantas outras pessoas que tem seus filhos e suas filhas executadas;
5) Que seja possível, para os familiares de Manoel Mattos e das outras 200-300
famílias que estavam representadas nesse caso, mais um conforto pessoal e a
compreensão de que as lutas continuarão; 6) Que possamos ter efetivamente a
garantia de funcionamento pleno e contínuo de programas de proteção aos(as)
defensores(as) de direitos humanos no âmbito federal e nos estados, assim como
de outros de programas de proteção à vida (PPCAM e PROVITA), e que estes tenham
capacidade de diálogo entre si e para dentro do Sistema de Justiça, Poder
Executivo e Legislativo com alguma capilaridade.
E, por fim, o mais importante desse
júri é que possamos perceber o defensor de direitos humanos enquanto um ser
humano em suas próprias circunstâncias, limites e possibilidades. Manoel Mattos
foi além do que muitos e muitas podem ir ou poderão suportar, mas que sua ação,
reação e luta pelos direitos humanos seja um exemplo para toda pessoa que se
indigna com as violências que estão ao redor no nosso cotidiano e mais perto do
que se imagina. Em perspectiva global, do que percebemos aparentemente, sempre
lembro quando, após a visita em Itambé no ano de 2003 da Relatora da ONU para
Execuções Sumárias e Extrajudiciais, Manoel e demais pessoas comentavam
encostados no banco da praça enquanto o comboio das autoridades se retirava sob
escolta - com uma boa dose ironia e esperança matuta nordestina - : “A ONU veio
em Itambé, será que os direitos humanos vão vir também ?”, é esse o desafio,
não basta o resultado do julgamento, o que em nossa avaliação é bastante
significativo e importante, mas será que os direitos humanos vão chegar lá
também ? Vão chegar lá em Goiás? Vão chegar no complexo do alemão no Rio de
Janeiro? Em São Paulo nos casos das Mães de Maio? Vão chegar ao Ceará? Vão
chegar no Pará e em todas as dimensões de conflitos ali existentes? Enfim, sempre disse que as Cautelares na OEA
e o IDC foi obra de Manoel Mattos, as assessorias, assistência e as
instituições apenas emprestaram a forma, ligaram os pontos traçados, promoveram
a articulação e consolidaram os elementos finais. Para quem vive uma situação
de morte anunciada, a sistematização, organização e encaminhamento dado foi um
legado. Gostaria muito que ele visse tudo o que aconteceu e saber que deu algum
resultado o que ele apostou em vida, pois apontava que talvez ali em Itambé,
Pedras de Fogo e na região “a coisa” não ia andar bem e ele sabia, mas tinha
que ficar como repetiu diversas vezes, mas acreditava que os caminhos, as
capacidades técnicas e o campo de articulação para que aquele grau de
impunidade chegasse ao fim seria através dos mecanismos nacionais e
internacionais de proteção aos direitos humanos, que seus relatos fossem um
alerta ao sistema de justiça, Manoel Mattos sabia que para superar as questões
dos grupos de extermínio na divisa “do medo,” que ele gostaria que fosse a
divisa dos direitos humanos, só era possível coletivamente, ele foi a ponte
entre as vozes invisíveis e uma gama maior de estruturas em busca de justiça.
Agora todos e todas se tornaram pontes dele e dos seus assistidos, familiares e
desconhecidos. Manoel Mattos, enquanto advogado, trabalhou com uma organização
de dados e acompanhamento de fatos que incomodou e ainda incomoda, e que esse
seja um exemplo para quem pretende seguir de forma consequente na atuação da
defesa dos direitos humanos e/ou da assessoria jurídica popular, a junção de
técnica com obstinação, de utopia com organização. Manoel Mattos, presente!
* As fotos são de Manoel Mattos e do
dia do julgamento por Júri Popular, e foram cedidas por Eduardo Fernandes para
a página da RENAP.
Enviado por Priscylla Joca para o PLANETA EM MOVIMENTO