Por Renato Athias
O trecho acima foi retirado do artigo
de Carlos Estevão de Oliveira escrito em 1937 e publicado em 1938 pelo Boletim
do Museu Nacional da UFRJ. Talvez, seja um dos primeiros escritos etnográficos
sobre os Pankararu. Mais tarde, Estevão Pinto vai escrever sobre as máscaras
Pankararu. Carlos Estevão de Oliveira insiste, mais de uma vez, dizendo que os
atuais Pankararu fazem parte, talvez, de uma confederação de povos,
provenientes de vários lugares dos arredores da Serra Negra, que se agruparam
nessa parte do Rio São Francisco, nas proximidades da Cachoeira de Itaparica,
em meados do século XVIII. É nessa condição de grupos confederados que a noção
de terra indígena unitária e contínua será elaborada entre eles, sob os
parâmetros do que eles vão chamar de “árvore Pankararu”, com o seu “tronco” e
suas “ramas”.
Têm-se notícias através de documentos
históricos que esses índios vão iniciar um aldeamento em 1700, de acordo com
carta régia de 1703. Mais tarde, têm-se notícias que os padres Oratorianos
organizaram a missão católica nessa parte do rio desde 1752, com um número
significativo de índios provenientes de vários lugares, certamente fugidos e
expulsos de algum lugar onde se precisavam das terras para as fazendas de gado.
A capela terá o nome de Nossa Senhora da Saúde. Outras notícias afirmam que
escravos negros fugidos de fazendas de gado recebem guarita nesse agrupamento
indígena que foi denominado de Brejo dos Padres, mas não se tem notícias do
tamanho dessa área. A impressão que se tem é de que essa terra era muito
grande, pois ia até a margem do Rio São Francisco. Durante todos esses anos, essa terra desses
índios agrupados vem sendo reduzida, vem sendo espoliada. Depois, veio a
criação da Freguesia de Tacaratu, que em 1875 será transformada em Vila de Tacaratu.
Os praiás dos caboclos do Brejo já abrem a festa de Nossa Senhora da Saúde.
Cem anos depois da criação do
agrupamento do Brejo dos Padres, em 1877, Dom Pedro II, em viagem pelo Rio São
Francisco, visita a cidade de Petrolândia que, cem anos mais tarde, estará
destinada a ficar embaixo das águas que hoje formam o lago da Hidrelétrica de
Itaparica, implicando em uma grande mobilidade de pessoas e transformações
fundiárias.
Para nós, hoje seja talvez muito
difícil imaginar a vida cotidiana destas pessoas vivendo nestes agrupamentos
durante esse período no qual os índios provenientes de muitos lugares vão
precisar esconder-se, pois por decreto imperial deixaram de ser índios. Os
aldeamentos indígenas passaram por grandes transformações e se tornaram vilas
politicamente organizadas. Foram muitos acontecimentos e muitas situações que
os índios tiveram que aceitar simplesmente para continuarem a sobreviver.
Portanto, as estratégias de sobrevivência física e cultural foi e estão sendo a
grande meta desses índios até hoje, sempre incluída nos planejamentos de todas
as lideranças.
A terra, nessa relação política, não
pertencia mais aos índios. Pertencia aos senhores coronéis e donos de sesmarias
que utilizavam os índios como agricultores, morando de alugado em suas próprias
terras. Trabalhando na terra e pagando a meia a algum coronel. Não serão mais
chamados pelos nomes indígenas, as diversas línguas não puderam ser
desenvolvidas. Eles são proibidos de falar as suas línguas. Eles vão se tornar
o que comumente se chama de "Caboclo”. Essa é, portanto a identidade genérica
que assumem forçadamente. Eles são os “Caboclos do Brejo dos Padres”.
Quando Carlos Estevão escreveu o
texto acima, a unidade étnica Pankararu estava se formando, eles ainda eram
apresentados como caboclos. Esse agrupamento de vários índios provenientes de
várias lugares, as lideranças mais antigas, como o seu João Tomás, que tive a
oportunidade conhecer morando no Macaco, vão denominar de “Pancarú Geripacó
Cacalancó Umã Canabrava Tatuxi de Fulô”. Foi um grande processo de negociação
para compor o que seriam os Pankararu atuais. Essas lideranças puderam
participar dessa longa caminhada de negociações, cujas narrativas podemos ainda
encontrar na tradição oral e nos versos dos Torés Pankararu. Certamente, o
famoso Serafim, “chefe dos Caboclos” como escreveu Carlos Estevão, será sem
dúvida um daqueles importantes personagens que incentivará a unidade Pankararu
pela sua sobrevivência física e cultural já relatada pela imprensa desde 1938.
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Serafim com duas cantadoras, fotografado por Carlos Estevão em 1937
Acervo da Coleção Etnográfica Carlos Estevão de Oliveira, Museu do Estado de Pernambuco. |
O Estado Novo de Getúlio Vargas vai
reconhecer os Pankararu como povo etnicamente diferenciado e os colocará dentro
da condição de “silvícolas”, tal como estavam denominados os povos indígenas,
na época, na Constituição Federal dos Estados Unidos do Brasil. Introduzindo-os
na condição de pessoas necessitando de uma tutela, o papel organizativo do
Estado será de criação do Posto Indígena, já funcionando em 1940.
Para esses índios, Dom Pedro II
quando visitou Petrolândia fez a doação de uma sesmaria, ou seja, de uma terra
de uma légua em quadra, marcada a partir da Igreja que está no Brejo. Esse foi
o forte argumento para o reconhecimento étnico e para dar início ao processo de
demarcação da terra indígena dos Caboclos do Brejo dos Padres, ou seja, dos
Pankararu, junto com esse reconhecimento veio toda uma estrutura e demandas de
organização por parte dos agentes indigenistas que atuaram nessa área. Uma
légua em quadra será por muito tempo o tamanho da terra única e contínua para
os Pankararu, começam a ter esse entendimento entre as principais lideranças.
Será um longo processo de negociação de transformação de sua organização
social, pois desde 1937 o SPI já vai implantando uma estrutura no local.
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Trechos da reportagem sobre as demandas ao governo federal das Terras Pankararu publicadas no Jornal do Comércio em 1938 (Acervo Coleção Carlos Estevão de Oliveira do Museu do Estado de Pernambuco)
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Na realidade, as lembranças e as
histórias orais nos informam que esses índios moravam nas proximidades da
margem do Rio do São Francisco. As pedrinhas da Cachoeira de Itaparica estão
presentes na vida desses povos, pois vão fazer parte do entendimento do ser
Pankararu, dando os nomes para o Encantados. Deixou de existir quando o lago da
Hidrelétrica Luiz Gonzaga cobriu a Cachoeira de Itaparica. As lideranças, desde
os anos quarenta, vão organizando o povo em estruturas próprias, tendo o tronco
e as ramas como paradigmas dessa organização política interna.
O discurso já está montado e
organizado. As lideranças do tronco velho saem do Brejo e vão longe, atrás das
ramas que estão espalhadas, vão atrás da demarcação de suas terras, vão atrás
da oficialização. Escutei essas histórias relatadas por seu João Binga, Seu
João Tomás, Dona Maria Chulé, Dona Quitéria, Seu João de Páscoa e muitas outras
lideranças, algumas já se foram deste mundo outra estão ainda nessa mesma luta,
desde os tempos em que os Padres Oratorianos agruparam esses índios na margem
do São Francisco. Essas histórias são contadas até hoje. Foram muitas as
viagens ao Rio de Janeiro, depois Brasília e a muito outros lugares. Muitas
pessoas vão se mobilizar para que os Pankararu tenham de fato o que restou das
suas terras tradicionais, que agora já tem uma definição em uma demarcação
feita pelo SPI, ratificada pela Funai em diversos processos e que todos os Pankararu vão dizer: é um
quadrado formado por uma légua de sesmaria que dá 14.294 hectares.

RENATO ATHIAS é Professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFPE
AS FORÇAS ENCANTADAS: DANÇA, FESTA E RITUAL ENTRE OS PANKARARU - fotografias de
Carlos Estevão
Primeira matéria da série especial sobre o POVO PANKARARU