Por: José Maurício Arruti [1]
Nos embates públicos que marcam a disputa em torno das
terras Pankararu, é comum que os “posseiros” (ocupantes não indígenas)
mobilizem constantemente dois tipos de argumentos contra as reivindicações
territoriais pankararu e em favor de sua própria permanência nas terras já
demarcadas como indígenas. De um lado, argumentam que não haveriam distinções
significativas entre famílias indígenas e não indígenas, tanto do ponto de
vista material, quanto do ponto de vista social, reivindicando em favor disso
os constantes casamentos entre os dois grupos, quase sempre de um jovem
posseiro com uma jovem indígena. Neste caso, a distinção entre índios e
não-índios seria uma "invenção" da Funai. De outro lado, colocam-se na posição de
grupo ameaçado de expropriação de posses ancestrais, sem garantia de
reassentamento, de forma que a sua luta seria apenas mais um capítulo da luta pela
terra no Brasil. Este texto não tem a intenção de responder tais argumentos, tarefa
que cabe legitimamente aos próprios pankararu, mas tecer comentários sobre
eles, tomando por base uma breve reconstituição
das diferentes configurações histórico-discursivas deste conflito. [2].
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Foto: 'Três rodas de Praiá no Terreiro do Senhor dos Pássaros, TI Pankararu, por J. M. Arruti, 2017'. |
1.
Depois do reconhecimento oficial dos pankararu como
indígenas e da demarcação das suas terras, ao longo de toda a década de 1940, as
relações entre índios e não índios mantiveram-se praticamente inalteradas na
aldeia de Brejo dos Padres e vizinhas. A introdução do Posto Indígena pouco
alterou o padrão de dominação que a elite local havia imposto aos pankararu ao
longo dos sessenta anos que se seguiram à violenta extinção do aldeamento do
Brejo dos Padres. O que é facilmente explicado pelo fato dos primeiros
responsáveis pelo Posto Indígena terem sido recrutados entre aquela mesma elite
local. De outro lado, mesmo as lideranças que se mobilizaram pelo
reconhecimento indígena e não cessavam de buscar ajuda externa contra a invasão
das roças pelo gado dos proprietários vizinhos, estavam enredadas em relações de
vizinhança, afinidade, trocas matrimoniais, laços de compadrio, emprego e
clientela com estes mesmo proprietários, tornando
o enfrentamento direto quase inviável.
Esta situação só seria alterada na década de 1950, quando
o Posto Indígena passou a ser chefiado por Castelo Branco, militar aposentado
que tinha acumulado a experiência de agente tutelar em outros postos indígenas
e que se tornou um personagem quase
mítico na memória de indígenas e não indígenas. Para
implantar as novas diretrizes nacionais do órgão indigenista, o novo chefe de
posto impôs uma violenta ruptura no modelo de relações interétnicas. Com a
autoridade do SPI, que se confundia com a autoridade do próprio exército
nacional, e sem qualquer compromisso com as elites locais, Castelo Branco
providenciou a retirada de parte dos moradores não indígenas do Brejo do
Padres, impôs o pagamento de arrendamento das terras ocupadas por não indígenas
(parte importante da chamada “Renda Indígena”), passou a regular o acesso aos
recursos naturais disponíveis no Brejo e até mesmo a circulação de não
indígenas pelas estradas que cruzavam o território pankararu. Aqueles que não
se reconheciam e não eram reconhecidos como indígenas, mas que permaneceram
dentro das terras delimitadas, passaram a ser chamados de “posseiros”. Tal
ruptura atribuiu um significado totalmente novo à fronteira étnica existente
entre os pankararu e os regionais, tornando-a mais explícita e materializada no
próprio território. A fronteira étnica, que até então desenhara uma integração
hierárquica dos grupos locais, foi ressignificada, passando a separar tais
grupos.
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Foto: 'Três
rodas de Praiá no Terreiro do Senhor dos Pássaros, TI Pankararu, por J. M.
Arruti, 2017.'
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Os chamados “posseiros”, entretanto, recusavam este
rótulo, insistindo na auto-designação
de “condôminos”. Com isso pretendiam a posição jurídica de proprietários de terras que permaneceram
legalmente indivisas. Além disso, eles se afirmavam proprietários de terras
cuja cadeia dominial recuava até fins do século XVIII, tendo origem nos Garcia
D'Avila, da famosa empresa colonial da Casa da Torre. Desta forma, ao longo dos
primeiros embates judiciais com o SPI, os “condôminos” insistiam na sua condição de proprietários e
descendentes de uma genealogia quase nobiliárquica, fundada na conquista colonial
daqueles sertões. Nesses embates, eles recorriam à mediação das autoridades do município de
Tacaratu, como o promotor, o prefeito e o delegado, em muitos casos seus
próprios parentes. Mas o território em litígio, declarado indígena e domínio da
União, já estava fora da esfera de ação desses personagens locais.
É importante destacar como tais famílias de “condôminos”
se colocavam em um lugar social de dependência e subordinação com relação às
elites locais, ao mesmo tempo em que buscavam demarcar sua relação de dominação
com relação aos indígenas, por meio de relações análogas de patronagem e
compadrio. Buscavam legitimar sua posse sobre as terras indígenas recorrendo a um
status intermediário na cadeia de relações de hierarquia de poder local, quase
naturalizada. Nesta hierarquia o lugar atribuído aos indígenas era marcado
pelas tradicionais acusações de cachaceiros e preguiçosos, mas agora acrescidas
da acusação de “traiçoeiros”, já que eles não reconheciam mais os laços de
fidelidade e dependência que costuravam e estabilizavam aquela cadeia de
hierarquias locais, vigentes há mais de meio século.
2.
A partir da década de 1970, os moradores não-indígenas
das localidades do Bem-Querer, Caldeirão e Caxiado, principais focos
da resistência à desintrusão das terras pankararu, mudariam radicalmente seu discurso e
mesmo sua identidade política. Ao participarem ativamente da reformulação do
sindicato local, eles substituiriam a auto-atribuição de “condôminos” pela de "trabalhadores
rurais", de forma que a sua identidade social deixava de estar
referida à genealogia nobiliárquica colonial ou à lógica hierárquica local, para situar-se em relação ao campo político regional
e nacional, desencadeado pela construção da Usina Hidrelétrica de Itaparica.
Ao contrário do combativo sindicalismo rural
pernambucano da Zona da Mata, o sindicalismo no sertão do sub-médio São
Francisco restringia-se, até meados da década de 1970, à funções exclusivamente assistenciais. Tal posição só
seria alterada com o conflito decorrente da ameaça de expulsão dos camponeses
da área de influência da UHE de Itaparica, iniciada em 1975 e só concluída pela
CHESF em 1987. Os primeiros conflitos são deflagrados quando do deslocamento da
população da área do canteiro de obras em outubro de 1976, resultando na
organização, dois anos depois, do Encontro de agricultores de Petrolândia. Em
consequência desta mobilização, em 1979 foi criada uma articulação dos vários
sindicatos da região sob o nome de "Pólo Sindical do Sub-Médio São
Francisco". E, em função do foco de luta não ser tanto mais as relações de
trabalho, quanto a resistência à expropriação territorial, a auto-identificação
de posseiros passa a ter a mesma ou maior importância que a de trabalhadores rurais
para os sindicalizados do “Pólo”.
De outro lado, uma das estratégias da CHESF no
enfrentamento com o sindicalismo local foi não divulgar os mapas do lago
projetado para a barragem de Itaparica. O que tinha a intenção de dificultar a
mobilização das famílias pelo Pólo Sindical, acabou resultando no contrário, muito
em função da intensa participação da Igreja Católica neste processo de
mobilização: as comunidades mobilizadas ultrapassaram em larga media o número daquelas
que seriam diretamente atingidas pelo lago. Neste processo, a equipe pastoral da
Igreja Católica buscou promover encontros que reuniam indistintamente índios e
posseiros, para discutirem juntos as ameaças trazidas pela UHE. Entretanto, as
desconfianças históricas recíprocas, além da Funai, no pleno exercício de órgão
tutor, impediriam
tal convergência. A mediação da equipe pastoral não
conseguiu superar as clivagens étnicas locais. Apesar de ambos se situarem em
posição semelhante diante das ameaças do desenvolvimentismo nacional, a
história do conflito os colocava em lados opostos no plano local.
Nesta mesma época ocorria também a estruturação de um
movimento indigenista alternativo no país, em grande parte estruturado pela
mesma igreja católica e em oposição a projetos análogos do desenvolvimentismo
autoritário. Por isso não é coincidência que, a partir deste momento, tanto
indígenas pankararu quanto os posseiros nas suas terras passassem a recorrer à gramática
da relação opressores-oprimidos para traduzirem suas lutas. Se no contexto
nacional isso contribuía na construção de uma unidade política e narrativa para
as suas lutas, no plano da disputa local isso resultou em uma
espécie de disputa pelo lugar de oprimido. Os indígenas oprimidos pelos brancos,
desde as guerras justas até a expropriação das terras do seu aldeamento. Os
posseiros oprimidos pelo Estado, representado no plano local pela CHESF, mas
também pela Funai.
3.
Depois da subida do lago, em 1989, os posseiros das
terras pankararu ganhariam amplo protagonismo na mobilização política local. Como
as terras indígenas não foram atingidas pela subida do lago, as famílias de posseiros das localidades de Caxiado, Caldeirão e Bem-Querer, situadas dentro das terras indígenas, seriam
economizadas do enorme impacto representado pelo reassentamento.
Seria um erro minimizar a importância desta militância
e do papel político do Pólo Sindical na organização do conjunto dos camponeses,
trabalhadores rurais e ribeirinhos do Sub-Médio São Francisco. O Pólo Sindical
esteve à frente de um potente e inovador movimento social que foi capaz de
unificar uma grande diversidade de grupos sociais (de classe, profissionais,
políticas) sob a categoria englobante
de “atingidos”. Com isso, entre entre 1975 e 1990, conseguiam manter unificadas
suas estratégias de luta em torno de um objetivo principal: o reassentamento
das famílias desabrigadas pela subida do Lago de Itaparica.
. Uma conquista que não tinha sido sequer
vislumbrada até então por outras populações atingidas por barragens, como as de
Sobradinho. Isso
fez com que o Pólo Sindical focalizasse seus esforços nas reivindicações ao
governo, representado no local pela CHESF, na fiscalização dos acordos firmados
e das ações concretas de cumprimento de tais acordos. Até mesmo as agências
multilaterais e de financiamento externo, como o Banco Mundial, passaram a ter
no Pólo Sindical um importante regulador das metas sociais implicadas no grande
projeto, que se estendia por dois estados e sete municípios.
Independente das dificuldades vividas ao longo de todo
este período (de reassentamento, de implementação de uma agricultura irrigada,
de invasão do plantio de maconha nas agrovilas etc.) o Pólo Sindical adquiriu
enorme visibilidade e importância política, estando entre os principais
movimentos sociais do período no Nordeste. Isso permitiu que as suas
lideranças, que também eram posseiros na Terra Indígena, usassem de tal capital
político para protelar soluções e minimizar a importância do conflito com os pankararu.
Os processos na justiça foram sendo estendidos e a própria Funai se viu enredada
em acordos políticos regionais, de forma que a saída dos posseiros da terra
indígena nunca foi, até bem pouco tempo, sequer planejada. Apesar das
lideranças pankararu nunca terem deixado de se mobilizar pela saída dos
posseiros de suas terras, estes se comportaram, na maior parte deste tempo,
como se esta não fosse uma alternativa real, e continuaram construindo e
ampliando suas casas e roças.
Em vários momentos a situação chegou a ser vista com
preocupação tanto pela Igreja Católica quanto por outros apoiadores (inclusive
agencias internacionais) do Pólo Sindical na região, que também estão
comprometidos com a causa indígena no plano nacional. Esta contradição entre as
escalas local e nacional na definição de alianças políticas foi tema até mesmo
de debates internos ao Partido dos Trabalhadores, que surgiu e se fortaleceu na
região muito associado à luta dos “atingidos”, mas que não podia simplesmente
desconhecer a causa indígena. Apesar dessas discussões, a ascensão política do
PT a partir dos anos 2000 ajudou a consolidar este impasse.
4.
Nesta configuração do conflito, o Estado desempenhou,
por um longo tempo, um papel homólogo para posseiros e indígenas, ainda que ambos
lhe atribuam conteúdos opostos. Se no discurso dos trabalhadores atingidos pela
UHE o Estado é o expropriador e operador da violência policial e militar, no
discurso indígena o
Estado, ou "o governo" (como diziam as lideranças mais velhas), tem o papel histórico de reparador
das perdas que as violências coloniais lhe impuseram. Para os indígenas a sua
luta está respaldada no direito que lhes foi reconhecido pelo Estado. Para os posseiros
a sua luta é contra uma falsa separação entre índios e não-índios imposta por
este mesmo Estado: é constante a argumentação de que o SPI e depois a FUNAI teriam
forjado um conflito que segundo eles não existe, já que eles são vizinhos, amigos,
casam entre si, jogam bola juntos etc. Em ambos os casos, enfim, era atribuído
ao Estado o lugar de vértice das relações de poder locais: o
agente por excelência, aos quais as agências indígena e camponesa estavam
subordinadas ou em relação à qual apenas reagiam.
Este lugar serviu, tanto a indígenas quanto a
posseiros, como uma estratégia de denegação do conflito direto entre eles,
mesmo que algumas vezes este tenha chegado à violência de fato. Esta sublimação
do conflito inicialmente foi importante para os indígenas que, depois de
décadas de subordinação, costurada por intrincadas relações de dependência
pessoal, tiveram grande dificuldade de se colocar como agentes do seu próprio
direito à terra e no conflito dele decorrente. Mais tarde, porém, esta mesma
sublimação do conflito serviria especialmente aos posseiros, como vimos, em
função dos constrangimentos impostos por seus compromissos políticos na esfera
pública, diante da qual é difícil justificar que trabalhadores
ligados a uma perspectiva progressista, estejam contra os índios, a fração
oprimida por excelência de nossa sociedade, símbolo de várias lutas políticas.
Este quadro começaria a ser alterado, no plano
institucional, com a relativização da tutela
pós-1988, mas só se completaria, na prática, com a reestruturação da Funai de 2009, que a retiraria do lugar
de mediadora absoluta das ações indígenas. Tão ou mais importante que essas
mudanças institucionais, porém, seriam as mudanças na própria organização
interna pankararu. A consolidação de uma educação escolar indígena a partir dos
anos 2000, que permitiria a ampliação do número de escolas dentro da terra
indígena e do surgimento de uma numerosa e politicamente ativa categoria de
professores pankararu, assim como a expansão do número de jovens
universitários, seriam dois
fatores cruciais nesta mudança.
A escola pankararu é o lugar onde se tece uma nova
relação com a sua própria história e com a história local, a partir da qual as
antigas relações de dependência pessoal não são resolvidas, mas são
problematizadas e colocadas em perspectiva. As novas lideranças, jovens
universitários ou profissionais já ligados à escola ou à saúde indígena, participam
de novos circuitos e articulações indígenas, que permitem colocar em contato
experiências, estratégias e discursos. Esses novos pankararu estão
profundamente orientados pela imagem e pelas histórias das antigas lideranças,
mas lançam mão de novos conhecimentos e habilidades: aprenderam a fazer o seu
próprio caminho por dentro da máquina administrativa e judiciária, ou por fora
dela (como na recente ocupação dos prédios da CHESF em Itaparica), levando o
processo de regularização fundiária das suas terras até limites que a Funai,
enquanto sua tutora legal, nunca alcançou. Trata-se de um novo momento da luta
pankararu, que tem como marco temporal a titulação da Terra Indígena
Entre-Serras em 2006. Neste novo momento os pankararu mobilizam um discurso
guerreiro, que valoriza o seu próprio protagonismo nas conquistas dos direitos
indígenas e de cidadania, articulando-se cada vez mais às lutas indígenas e de
outros movimentos sociais no plano regional e nacional.
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Foto: 'Assembléia das lideranças indígenas no processo
de ocupação dos prédios da CHESF, Itaparica, por J. M. Arruti, 2017.'
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Os posseiros de Caldeirão, Caxiado e Bem Querer, já
não podem acusar o Estado de artífice de um conflito inexistente, nem podem
justificar suas estratégias de permanência naquelas terras como uma resistência
à ação expropriadora estatal. O Estado não opera mais como o vértice que
permitia sublimar a violência latente produzida pelo impasse de quase 60 anos. Apesar
disso, os posseiros insistem em reproduzir no plano do conflito territorial com
os pankararu o discurso e as estratégia que desenvolveram enquanto “atingidos”.
A disputa, entretanto, está sendo travada nos tribunais, nos quais suas
lideranças firmam acordos públicos que depois incentivam a população de
posseiros a desrespeitar. Com isso confundem a antiga postura de resistência, que exerciam em relação aos
grandes projetos hidrelétricos, com a atual postura de intransigência diante de negociações travadas na justiça com um
outro grupo
social historicamente espoliado. Na prática, os posseiros mobilizam, no plano
local, estratégias e argumentos contra as demandas indígenas que estão muito
próximas daquelas que vem sendo mobilizados pelo agronegócio no plano nacional.
Ao continuarem a disputar, na esfera pública, o lugar do oprimido, os posseiros de
Caldeirão, Caxiado e Bem Querer, vinculados
ao Pólo Sindical do Sub-Médio São Francisco, não conseguem encarar de frente o problema que o reconhecimento dos direitos indígenas coloca
para o seu próprio posicionamento político. Um posicionamento que é herdeiro
tanto de uma das lutas sociais mais bonitas e importantes do sertão do são
Francisco, quanto dos “condôminos” que reivindicavam o vínculo colonial e
colonialista com a Casa da Torre.
[1]
Professor do Departamento de Antropologia da UNICAMP.
[2] Esses comentários estão baseados em uma
releitura atualizada e sintética de aspectos devidamente documentados nos
capítulos 2 e 4 do meu trabalho “O Reencantamento do Mundo: Trama histórica e
Arranjos Territoriais Pankararu” (1996).