Por Renato Santana, Assessoria de Comunicação - Cimi
O ano era 1998, ápice do governo neoliberal de FHC. Entre
privatizações e a implementação da cartilha do Estado Mínimo, o Congresso
Nacional aprovou as leis 9.637 e 9.648. Tais normas dispensam de licitação a
celebração de contratos entre o Poder Público e as organizações sociais para a
prestação de serviços públicos, dentre eles a saúde. Naquele mesmo ano, PT e
PDT questionaram as leis e ajuizaram no Supremo Tribunal Federal (STF), com
pedido liminar, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 1923.
Dezesseis anos se passaram, o PT chegou ao Palácio do
Planalto e hoje no governo federal faz uso destas mesmas leis para privatizar a
saúde indígena com a criação do paraestatal Instituto Nacional de Saúde
Indígena (INSI), no âmbito do Ministério da Saúde. A ADI segue sob análise do
STF e a propósito de desculpas quanto ao caráter amplo da composição política
do governo, a Saúde este é uma das pastas que o PT, na distribuição de
cadeiras, jamais deixou de abrir mão. A Secretaria Especial de Saúde Indígena
(Sesai), mentora do INSI, é capitaneada por um grupo de petistas, alguns
históricos, ligados ao diretório partidário de Brasília (DF).
Como a Sesai não tornou público o documento com a proposta
de criação do INSI, informações obtidas pelo Cimi junto a integrantes do
governo federal dão conta de que a Lei 9.637 é um dos principais argumentos dos
defensores da proposta contra as acusações de que a criação do instituto seria
inconstitucional. Neste caso, integrantes do Ministério do Planejamento,
Orçamento e Gestão, além da própria Sesai, tomaram a lei como porta de saída
para a criação do instituto, diante do fato de que não cumpriram prazos
acordados com o Ministério Público Federal (MPF) para a realização de concursos
públicos destinados à saúde indígena.
Caso o paraestatal INSI chegue ao Congresso Nacional para
ser apreciado como Projeto de Lei (PL), a bancada do PT terá diante de si dois
caminhos em rota de colisão: o que o partido expressa na ADI e o posicionamento
do próprio governo, que se apoia em uma lei neoliberal para impor a
privatização à saúde indígena. Além disso, o Cimi apurou com fontes ligadas ao
governo federal de que o PL da privatização da saúde indígena está pronto ao
menos desde abril deste ano, circulando inclusive no Ministério da Justiça.
“Se trata de um processo de privatização”
Os requerentes da ADI, PT e PDT, argumentam que a Lei 9.637
e diversos artigos 9.648, ambas de 1998, permitem ao Poder Executivo
“transferir para entidades de direito privado não integrantes da administração
pública atividades dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao
desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à
cultura e à saúde, à prestação de serviços públicos nessas áreas”.
Para o PT, “se trata de um processo de privatização dos
aparatos públicos por meio da transferência para o setor público não estatal
dos serviços nas áreas de ensino, saúde e pesquisa, dentre outros,
transformando-se as atuais fundações públicas em organizações sociais (sic)”. O
partido defende na ADI que a lei promove “profundas modificações no ordenamento
institucional da administração pública brasileira”. Em 2009, em ocasião de
análise da ADI no plenário do STF, a Procuradoria Geral da República (PGR)
concordou com tais argumentos impressos na ADI.
Na ação, os requerentes atacam ainda a forma de gestão e
aplicação dos recursos públicos da lei orçamentária “sem, todavia, submeter-se
às limitações estabelecidas para as entidades administrativas estatais”. Caso o
paraestatal INSI seja criado, mais de R$ 1 bilhão anual destinado à saúde
indígena passará a ser gerido fora do âmbito do controle estatal, sem
licitações ou fiscalização dos órgãos de controle da União. Tampouco do MPF.
Isso só ocorrerá, conforme os artigos das leis questionadas pelo PT na ADI,
diante de pedido do próprio governo.
A sustentação dos impetrantes da ADI afirma que as
prestações dos serviços públicos se afastam do núcleo central do Estado
“mediante um modelo mal acabado de transferências de responsabilidades públicas
a entes privados”. Tais “entes”, diz a argumentação, “por não prescindirem da
atuação subsidiária do poder público, terminam por se transmutarem pessoas
funcionalmente estatais, porém despidas da roupagem que é própria do regime de
direito público”.
Ou seja, o privado mostra aparência de público na prestação
do serviço, mas sem as obrigações inerentes ao regime público – que é
exatamente onde se enquadra o caso do INSI. Os partidos acrescentam na ADI que
preterir licitações para a concessão ou permissão de serviços públicos fere o
artigo 175 da Constituição Federal. “Não seria o caso de permissão e
concessão”, salientam os requerentes, “mas de mera terceirização de serviços
mediante contrato com pessoa privada”.
Concurso público
Ao PT não escapou na ADI o concurso público, reivindicação
dos povos indígenas. Conforme o descrito na ação, a contratação seria
discricionária, feita sem a prévia realização de concurso público, em violação
aos princípios da impessoalidade, da eficiência e da isonomia. Outro ponto
tange os salários dos dirigentes e empregados destes entes privados, as tais
organizações sociais, que pagos com dinheiro público não receberiam valores
fixados e tampouco atualizados por lei.
“A criação das chamadas organizações sociais e seu processo
de qualificação conforme estabelecidos na lei desrespeitam a Constituição
Federal”, dizem os partidos na ADI. “A criação das organizações se dá mediante
um processo induzido de substituição de entes públicos por entes privados
criados por encomenda, ad hoc, para assumir funções antes a cargo do Estado”,
conclui.
Andamento da ADI
A ADI segue em tramitação na Suprema Corte. Em 1º de agosto
de 2007, os ministros do STF mantiveram as leis, por maioria de votos,
indeferindo assim a liminar impetrada pelo PT e PDT. Porém, o relator, ministro
Ilmar Galvão, se aposentou e o ex-ministro Carlos Ayres Britto assumiu a
relatoria, retomando o julgamento de mérito da norma. Ayres Britto votou pela
procedência parcial da ADI. Na sequência, em 2011, votou o ministro Luiz Fux,
acompanhando o relator. Neste mesmo ano, o ministro Marco Aurélio Mello pediu
vistas e ainda não pronunciou sua posição derradeira.
Leia aqui o histórico e andamento da ADI no STF.
Como é possível constatar na tramitação da ADI, diversos
sindicatos ligados à saúde pública se manifestaram a favor da ação. A Sociedade
Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) se posicionou em plenário
corroborando com os argumentos da ADI.
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