Carimbo de taquara Kaingang - Foto: Vladimir Kozak, 1955
Fonte: ISA-Instituto Socioambiental
CARTA ABERTA PELA DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS NO BRASIL
Nós, lideranças tradicionais do Povo Kaingáng, líderes,
profissionais, jovens, mulheres, anciãos dos 305 Povos Indígenas, que falam 274
línguas e totalizam 0,4% da população nacional, com o apoio das organizações
indígenas e pro indígenas, dos cidadãos brasileiros de todas as raças,
movimentos sociais e da sociedade civil organizada denunciamos o Estado
Brasileiro, seus Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário pelos 514 anos de
omissão em favor do extermínio dos Povos Indígenas, da expropriação das nossas
terras, da violação dos nossos direitos como seres humanos!
O Rio Grande do Sul abriga dois dos grandes Povos Indígenas
do país em população o que o torna o 10º Estado da Federação em população
indígena no país: o Povo Guarani e o Povo Kaingáng são, respectivamente, o 2º e
o 3º maior Povo Indígena do Brasil em população (Censo do IBGE, 2010).
Os Kaingáng são cerca de 45 mil pessoas cuja maior parte
habita o Estado do Rio Grande do Sul e possui as menores terras indígenas do
país, confinados em reduções dos antigos territórios tradicionais que equivalem
hoje a menos de 1% do território gaúcho, criando conflitos em que defendemos
nosso direito à terra à custa de muitas vidas cujas perdas não são divulgadas
pelos meios de comunicação e da criminalização individualizada de lideranças
que defendem direitos coletivos constitucionalmente garantidos e diariamente
desrespeitados.
A insuficiência dos nossos territórios tem ameaçado a
sobrevivência física e cultural do Povo Kaingáng, cuja língua se encontra em
risco de extinção, segundo o Atlas da UNESCO sobre Línguas do Mundo em Perigo e
os índices de desenvolvimento humano que colocam os Povos Indígenas como
segmentos em situação de risco social e mostram a omissão do Estado Brasileiro
em proteger a integridade dos Povos Indígenas como Povos distintos, nos termos
do artigo 8º da Declaração da ONU sobre os direitos dos Povos Indígenas.
Lutamos no Brasil e fora dele para que fosse reconhecido
nosso direito originário a terra: um direito anterior à existência do Estado
Brasileiro, que custou a vida de centenas e de milhares de indígenas e tivemos
êxito: a Lei Maior do Brasil e a Convenção 169 da OIT consagram o nosso direito
aos territórios indígenas. Um prazo de cinco anos foi estabelecido em 1988 e o
ano de 1993 passou sem a regularização das terras indígenas no Brasil. 21 anos
se passaram desde então e lutamos agora para não perder os direitos que nos
foram reconhecidos: denunciamos o retrocesso legal que está em marcha no
Congresso Nacional para eliminar direitos territoriais e assegurar os
interesses do latifúndio e do agronegócio.
Ressaltamos que o Governo atual possui os menores índices de
demarcação das terras indígenas desde a ditadura militar e que o Poder
Judiciário, o Poder Legislativo e o Poder Executivo Brasileiros têm violado o
princípio da legalidade que obriga o Estado a respeitar e implementar o direito
de consulta aos Povos Indígenas suscetíveis de serem afetados previamente a
adoção de medidas jurídicas, políticas ou administrativas, mediante
procedimentos apropriados, através de suas instituições representativas e de
boa-fé, conforme determina a Convenção 169 da OIT.
Expressamos nossa preocupação com iniciativas de cerceamento
dos direitos territoriais dos nossos Povos, financiados pelo agronegócio, a
exemplo da Proposta de Emenda Constitucional 215, que propõe atribuir ao Poder
Legislativo atividades que são prerrogativas do Poder Executivo, da Portaria
303 da Advocacia Geral da União e de todas as iniciativas legais e
administrativas tendentes a diminuir ou suprimir direitos territoriais dos
Povos Indígenas contrariando o espírito da Constituição Federal, o Estatuto dos
Povos Indígenas (Lei 6.001 de 1973) em seu artigo 2º, IX e o Decreto 1.775 de
1996 e em violação ao artigo 26 da Declaração das Nações Unidas sobre os
Direitos dos Povos Indígenas:
Artigo 26 – 1. Os povos indígenas têm direito às terras,
territórios e recursos que possuem e ocupam tradicionalmente ou que tenham de
outra forma utilizado ou adquirido.
2. Os povos indígenas têm o direito de possuir, utilizar,
desenvolver e controlar as terras, territórios e recursos que possuem em razão
da propriedade tradicional ou de outra forma tradicional de ocupação ou de
utilização, assim como aqueles que de outra forma tenham adquirido.
3. Os Estados assegurarão reconhecimento e proteção jurídicos
a essas terras, territórios e recursos. Tal reconhecimento respeitará
adequadamente os costumes, as tradições e os regimes de posse da terra dos
povos indígenas a que se refiram.
Denunciamos o Governo Brasileiro por cada confronto, por
todas as mortes que já ocorreram e que ainda ocorrerão pela disputa de terras
imemoriais, demarcadas pelo sangue dos nossos povos!
Exigimos o cumprimento e a imediata aplicação dos direitos
humanos previstos em marcos legais nacionais e internacionais na condução da política
para Povos Indígenas no Brasil.
Exigimos que o Governo Brasileiro promova, com urgência, em
consulta e com a participação plena e efetiva dos Povos Indígenas, um Plano de
Regularização das Terras Indígenas no Brasil, com a participação proativa do
Ministério Público Federal, para assegurar o cumprimento à Constituição Federal
de 1988 que reconhece o direito originário dos Povos Indígenas aos nossos
territórios tradicionais e em conformidade com a Convenção 169 da OIT.
Em face da ausência do Estado Brasileiro para estabelecer
diálogos solicitamos à Organização das Nações Unidas uma visita do Relator
Especial da ONU para os Direitos dos Povos Indígenas ao Brasil, com especial
atenção às Regiões Sul e Centro Oeste do Brasil, em caráter de urgência e a
apresentação de um relatório sobre os conflitos em virtude da violação de
direitos humanos pela demora nos processos de demarcação dos territórios
indígenas à próxima sessão do Fórum Permanente da ONU sobre Questões Indígenas,
à Corte Interamericana de Direitos Humanos e à Anistia Internacional.
O documento final da Rio+20 tem por título “O Futuro que
Queremos” e o parágrafo 49 menciona a importância da implementação da
Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas para um desenvolvimento
sustentável! O Brasil se propõe a ser uma das grandes economias do mundo: mas
onde estão os povos indígenas nos projetos de futuro do Brasil? Que futuro
teremos se as terras indígenas são a condição sem a qual não é possível nossa
sobrevivência física e cultural?
Nossos líderes, nossos povos e organizações já encaminharam
documentos, já realizaram manifestações pacíficas, viajaram a Brasília em busca
de soluções para os conflitos fundiários e receberam promessas vazias que não
foram cumpridas! Nossas lideranças têm sido assassinadas sem que os meios de
comunicação divulguem os homicídios que ocorrem diariamente contra os povos
indígenas e sem que os responsáveis sejam punidos.
Assim, essa manifestação é um pedido de socorro, de urgente
apuração das violações de direitos humanos e de adoção imediata de todas as
providências cabíveis: judiciais e administrativas em prol da sobrevivência e
do futuro dos nossos Povos.
“Enquanto nós estivermos vivos, lutaremos pelas nossas
terras!”
(Cacique Raoni Metuktire Kayapó).
Publicação original no blog Personal Escritor